A importância do comércio livre: ameaças a não esquecer e lições a relembrar

“O governo Biden revelou a sua estratégia comercial para a China; a abordagem é, globalmente, uma continuação da política delineada por Trump (…). Essa política (…) parte da assunção de que a China é uma ameaça estratégica para os EUA que necessita de ser contida por todos os meios (…)”

“Escalada de preços e escassez de produtos é o «novo normal». Situação deverá manter-se nos próximos meses. Dissonância entre oferta e procura e problemas estruturais explicam situação que ameaça o comércio e a recuperação económica mundial. (…) A crise nas cadeias de abastecimento está a afectar o mundo e a deixar quase todos «à beira de um ataque de nervos».”

Estes são apenas alguns exemplos de notícias que têm marcado, nos planos nacional e internacional, a atualidade recente e que dão conta de alguns focos de tensão no comércio mundial, que o ameaçam e podem fazer perigar. Nesta edição, voltamos a esta temática, cuja importância surge tão bem refletida nas palavras atribuídas a Frédéric Bastiat: “Si les marchandises ne traversent pas les frontières, les soldats le feront» (se os bens não cruzam fronteiras, soldados o farão).

Regressamos a esta temática porquê? Para quem as palavras de Bastiat não sejam suficientes ou pareçam exageradas, há ameaças que não devem ser esquecidas e lições que de tempos a tempos devem ser relembradas.

No contexto da Grande Depressão que abalou o mundo na sequência do colapso de 1929, o economista britânico John M. Keynes recomendou ao seu governo uma política protecionista como melhor caminho a seguir para ajudar a economia de sua majestade a sair da crise. Numa altura em que os impulsos nacionalistas ganhavam vigor – velhos ventos que hoje voltam a soprar – a doutrina keynesiana foi conquistando adeptos e, em breve, vários outros países passariam das palavras à ação. Em 1930, os EUA deram o mote no caminho do protecionismo com a aprovação da tarifa Smoot-Hawley – abrindo portas à subida das tarifas aduaneiras sobre mais de 20.000 produtos importados – que não deixou de ficar sem resposta por parte dos parceiros comerciais que rapidamente retaliaram com medidas idênticas, numa escalada que historiadores e especialistas tendem a concordar ter sido fator-chave no exacerbar da Grande Depressão. Lançado com o objetivo de estimular as economias nacionais, ironicamente o protecionismo acabou por contribuir de forma decisiva para transformar uma pesada recessão numa Grande Depressão, que viria a ter efeitos à escala mundial.

Assim foi naquela altura. Como será nesta? Entre hoje e amanhã? Num tempo que não olha a horas; numa altura em que tudo se transmite num ápice e em que as lógicas da globalização e da interdependência em muito ultrapassam a realidade daqueles dias?

Foi somente no rescaldo da II Guerra Mundial, uma vez mais pela influência de ingleses e americanos, que começámos gradualmente a voltar aos níveis de comércio internacional anteriores, assim ajudando à recuperação económica que fazia o seu caminho. Mas não nos enganemos! Seriam necessárias décadas para reconstruir um edifício deitado abaixo rápida, fácil e inconsequentemente.

Esta foi uma lição que fez eco nas décadas seguintes na mente de grande parte dos líderes ocidentais, mas que nem todos quiseram ouvir. Enquanto muitos se abriam ao comércio internacional, pondo em prática as lições da história, para outros a estória (e a história) foi outra.

A América Latina foi disto um exemplo paradigmático. Aqui, as importações eram a causa de todos os males e a cura viria pela mão da industrialização, tida como primeira medida e medida primeira para a substituição das importações. México, Argentina, Brasil, assim acreditavam que seria e assim fizeram, fechando-se ao comércio internacional.

Muito se poderia escrever sobre o que se seguiu, com vozes de um lado e do outro, argumentos pró e contra uma ou outra teoria, advogados de uma ou outra ideologia…. Mas recorrendo à velha máxima ousamos dizer: “contra factos não há argumentos”. E os factos são claros: para a Améria Latina, os 40 anos seguintes foram de enorme retrocesso económico. Em menos de meio século, com fortes restrições ao comércio internacional, foram vários os países da região que conseguiram descer do 1º ao 3º mundo, num dos maiores processos de retrocesso económico testemunhados na história mundial mais recente.

Enquanto a América Latina mergulhava na pobreza, do outro lado do mundo, países asiáticos que haviam optado por se abrir ao mundo traçavam o caminho inverso.

No início da década de 50, alguns dos que hoje são considerados “os novos tigres asiáticos” apresentavam rendimentos per capita semelhantes aos países mais pobres do continente africano. Na mesma altura, Brasil e Argentina tinham Pibs per capita muito próximos de muitos países da Europa Ocidental. No final do século, o quadro invertera-se. O Pib per capita da Coreia do Sul, antes cerca de metade do brasileiro, era agora quase três vezes superior. Outros exemplos poderiam ser dados. Os números existem e falam por si.

De um espectro ao outro das diferentes famílias políticas e escolas económicas, o consenso é generalizado no que respeita aos benefícios do comércio internacional. Não queremos com isto dizer que haja unanimidade no elencar desses benefícios, mas apenas que dificilmente se encontrará um advogado de restrições duradouras ao livre comércio a quem seja reconhecida credibilidade.

São séculos e séculos de literatura sobre as vantagens das trocas internacionais. De Adam Smith a Paul Krugman, passando por tantos outros, muito se tem escrito sobre a importância de comprar e vender, importar e exportar. Muito se tem escrito, é certo. Mas tendo em conta o que se vem testemunhando nos anos mais recentes, parece-nos não ser demais relembrar.

Há muito que vimos alertando para a importância das trocas comerciais, debruçando-nos, em cada momento, sobre temas que as podiam prejudicar, e as consequências que daí poderiam advir. Foram vários os cenários abordados: em 2016, olhámos a chegada de Donald Trump à Administração norte-americana e os alertas que então soaram ao comércio internacional; em 2017, analisámos riscos políticos que ameaçavam a internacionalização das empresas; no ano seguinte, a preocupação maior surgiu em torno do Brexit; em 2019 foi a vez da “guerra comercial” entre a China e os EUA; a pandemia chegou em 2020; e já este ano descortinámos o domínio chinês sobre o e-commerce, assim como a crise dos contentores como a mais recente ameaça ao comércio internacional.

O que nunca fizemos foi olhar o comércio internacional como uma ameaça em si. O pior entre os piores dos cenários. Improvável? Talvez não.

A história ensina-nos que criar um inimigo externo é uma estratégia frequentemente usada por líderes - políticos, económicos, religiosos etc. - para granjear apoios, unificar as bases, congregar as massas. Organizar-se politicamente contra um inimigo externo comum é mais fácil do que reconhecer e tentar dar resposta a problemas internos (normalmente estruturais) cuja solução se desconhece ou acarreta custos que não se quer suportar.

O comércio internacional serve bem esta ideia de inimigo, perigo ou ameaça comum. Assim é por duas razões centrais:

1. Porque é fácil identificar quem perde com o comércio internacional, i.e., onde se encontram concentradas as maiores perdas, em que setores, em que empresas;

2. Contrariamente, é muito difícil identificar com a mesma precisão quem ganha (os benefícios estão dispersos por toda a população) e, mais ainda, quantificar esses ganhos, não obstante serem substancialmente mais elevados do que as perdas. Um desequilíbrio facilmente explorável em sede de discursos e retórica.

Fazer do comércio um inimigo imaginário pode, no entanto, trazer perigos muito reais. Pode servir momentaneamente os interesses de alguns, mas prejudicar durante muito tempo os interesses de muitos. O benefício (de curto prazo) em algumas indústrias ou setores salvaguardados por medidas protecionistas pode, numa primeira fase, fazer aumentar o apoio político ao protecionismo levando à sua expansão. No entanto, se os parceiros comerciais adotarem medidas recíprocas, toda a economia sairá prejudicada. Novos danos tenderão a encontrar resposta no reforço das barreiras por parte dos primeiros, o que tendencialmente leva a uma nova contra resposta por parte dos segundos, numa espiral de efeitos económicos e políticos imprevisíveis.

A erosão dos laços comerciais leva à diminuição da interdependência económica entre os Estados, fragilizando ainda mais os laços políticos. A história já nos deu várias lições nestas matérias, mostrando-nos que as consequências políticas e geopolíticas de restringir a liberdade de comércio são difíceis de prever e podem assumir contornos verdadeiramente catastróficos. De igual modo, a experiência histórica sugere que o comércio livre (ou parcialmente livre) leva geralmente muito tempo a negociar e implementar. Já a sua destruição pode ocorrer num abrir e piscar de olhos. Os anos 30 do século passado deram-nos uma importante lição sobre os benefícios do livre comércio e os custos da sua interrupção prolongada. Quanto a nós, os últimos anos deste século evidenciam novas-velhas ameaças que importa não esquecer e a pertinência de velhas lições a relembrar.

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