Num encontro ministerial sobre segurança alimentar organizado nos Estados Unidos, o ministro da Agricultura da Ucrânia, Nicolay Soloky, anunciou que este ano a colheita de cereais no seu país equivale a metade da do ano de 2021. No mesmo sentido, segundo despacho da TASS de 19 de Maio, o embaixador russo em Washington, Anatoly Antonov, declarou que a segurança alimentar mundial tinha sido posta em questão para os próximos anos, pelas “unilaterais e ilegítimas sanções anti russas dos governos ocidentais”.
Juntando-se no aviso ao dueto, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, veio dizer que a crise de segurança alimentar mundial não poderá ser resolvida sem os fertilizantes da Rússia e da Bielorrússia e os cereais da Ucrânia”, acrescentando que “os adubos russos devem ter total e ilimitado acesso aos mercados globais”.
Esta estranha convergência no alarme explica-se, pois os riscos da crise alimentar, ou, por palavras mais directas, da fome, estão a acumular-se em consequência da invasão e guerra da Ucrânia e das sanções. Sendo a Rússia e a Ucrânia tradicionais celeiros da Europa e do mundo e responsáveis por cerca de 12% da produção cerealífera mundial, e achando-se neste momento, por causa do conflito e suas consequências, impedidas de efectuar as suas colheitas e exportações correntes, há consequências globais. Os ucranianos têm bloqueadas as suas exportações de cereais armazenados nos silos do porto de Odessa (por onde passam quase 90% das suas exportações). Além disso, não haverá onde guardar a próxima colheita, por os silos e armazéns estarem cheios ainda com a anterior. As sanções – e a suspensão das exportações de fertilizantes pela Rússia e pela Bielorrússia – atingem a produção de muitos países distantes do teatro de guerra. A reforçar esta “tempestade perfeita”, a subida do preço do gasóleo dificulta o movimento de tractores e outras máquinas agrícolas.
As repercussões noutros continentes, nomeadamente em África, podem ser gravíssimas e ter gravíssimas consequências políticas. Recorde-se que as revoltas conhecidas por “primaveras árabes” no Norte de África e Médio Oriente tiveram por origem a subida do preço do pão.
A África subsaariana está na linha da frente das vítimas desta crise alimentar na África Oriental e no chamado Corno de África, assolados por uma das maiores secas dos últimos 40 anos. A Etiópia, o Quénia e a Somália são países particularmente atingidos pelas consequências da seca; 14 milhões de pessoas, 6 milhões dos quais crianças, estão particularmente ameaçadas. No Quénia, um milhão e meio de cabeças de gado morreram já pelos efeitos da seca.
A guerra da Ucrânia, com o consequente aumento dos preços e escassez dos cereais, dos combustíveis e dos fertilizantes, levou a situação a pontos muito críticos, como lembra um muito recente documento da FAO (“Information Note. The importance of Ukraine and Russian Federation for global agricultural markets and the risks associated with the current conflict”).
Nesse documento escreve-se, nomeadamente, que os cortes nas exportações da Rússia e da Ucrânia para o primeiro semestre de 2022, dificilmente encontrarão fornecedores alternativos nos Estados Unidos, no Canadá, na Argentina ou na Austrália: nos EUA e no Canadá, as colheitas de 2021/22 foram mais baixas que o costume. A Austrália está já no seu máximo de exportação e a Argentina tem limites à produção e exportação por restrições de política interna. Quanto à China e à Índia, também restringiram exportações.
Uma série de países da África e do Médio Oriente dependem estritamente das exportações de cereais russos e ucranianos, bem como, no médio prazo, dos adubos e fertilizantes russos e bielorrussos. Porque, por uma destas abundantes contradições do sistema económico mundial, a África, apesar de ser o continente que possui 60% da terra arável mundial, é um importador de alimentação. E há uma longa crónica de fomes em África – geralmente ligadas a conflitos ou desastres naturais como as fomes na Nigéria e na Etiópia nas décadas de 60 e 80 do século passado.
A perspectiva agora é séria: há 14 países africanos que dependem da Rússia e da Ucrânia para mais de metade das suas importações de trigo; e mais de metade do continente importa dos dois países mais de um terço do trigo que consome. Além disso, com a guerra e as sanções, os preços do cereal subiram em flecha.
Esta nova crise, disparada pela invasão de 24 de Fevereiro, veio em cima de uma conjuntura de médio prazo, marcada pela subida do preço dos combustíveis e dos transportes e por crises climáticas em países produtores que baixaram as produções. Para além destas causas mais gerais, o mercado alimentar tem estado episodicamente condicionado e sacudido por crises nos grandes produtores que, em situações de carência interna, suspendem a exportações, como fez a Índia em 2007-2008 para o arroz, e a Rússia para o trigo em 2010.
Este é um problema sério: historicamente, a Ucrânia, em 1932-33, foi vítima de uma fome de terríveis proporções, o Holodomor, causada decisão das autoridades comunistas de Moscovo, de exportar o trigo da região para continuar a receber as divisas correspondentes, indiferentes à fome e morte de milhões de ucranianos.
Sem a carga política e criminosa deste período, é lógico que, perante colheitas menores e medo de recessão alimentar, os grandes países produtores restrinjam ou mesmo proíbam as exportações.
Devido a problemas internos com as colheitas causados por uma vaga de calor, o governo da Índia proibiu as exportações de trigo em 14 de Maio, exceptuando aquelas que já estavam convencionadas e com pagamento garantido, bem como para países que estejam em risco de “insegurança alimentar”. Segundo os funcionários da Secretaria do Comércio de Nova Deli, o Governo quer, sobretudo, evitar uma subida descontrolada de preços internos.
David Beasley, republicano, antigo governador da Carolina do Sul e actual responsável pelo World Food Programme das Nações Unidas, em declarações recentes na reunião da SABEW em Nova Iorque, mostrou-se profundamente preocupado com as perspectivas das carências alimentares que esperam o mundo depois da Covid-19 e sobretudo depois da guerra com a Ucrânia – entre a paragem dos trabalhos e o fecho dos portos – que levou à paralisação das exportações ucranianas de cereais, que alimentam 400 milhões de pessoas no mundo. Beasley recordou que, nos Estados Unidos, as pessoas podem estar a pagar a alimentação mais cara, mas podem pagá-la. Ao passo que, em países africanos como o Chade, o Mali ou a República Democrática do Congo, a alternativa é a fome.
Já em Janeiro de 2022, antes da guerra estalar na Ucrânia, as Nações Unidas tinham apontado o risco deste ano ficar assinalado como o da “pior crise humanitária desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Depois veio a guerra a confirmar e a piorar tudo.
Os alarmes estão agora a ressoar: The Economist, na sua última edição, chama o tema à capa – “The Coming Food Catastrophe” – publicando um dossier que regista, num quadro sintético, as importações de trigo da Rússia e da Ucrânia em 2020: neste quadro vê-se que países como o Paquistão, o Egipto, a Turquia e o Líbano importam dali mais de 70% do trigo que consomem; e que a África subsaariana importa das duas nações em guerra 35% daquele cereal.
Pior, no editorial lembra-se que, só este ano, depois da supressão de exportações pela Índia, devido à vaga de calor, o preço do trigo subiu 60%. Segundo o semanário britânico, talvez entre 440 e 1600 milhões de pessoas estão em risco de segurança alimentar.

