É importante notar que o DIH vincula tanto os Estados como os atores não estatais, incluindo indivíduos. Isto significa que "o DIH já é vinculativo para qualquer pessoa cujas atividades estejam estreitamente ligadas a um conflito armado".
Ainda que assim não fosse, os Estados, à luz do Direito Internacional Humanitário, encontram-se sob a obrigação de criminalizar graves violações de DIH e de investigar e condenar os agentes culpados. Assim, as empresas podem ser responsabilizadas junto das jurisdições nacionais pela violação do direito internacional humanitário.
A Responsabilização das empresas que operam em contexto de conflito armado:
Têm vindo a ser cada vez mais os processos civis e criminais instaurados contra empresas e seus diretores pelo seu potencial envolvimento em crimes internacionais ou violações de direitos humanos.
Embora o Tribunal Penal Internacional não tenha jurisdição para processar outras entidades que não pessoas singulares, tal como decorre do Artigo 25 do Estatuto de Roma, tem poderes para julgar o pessoal das empresas, em particular os seus diretores e administradores. A nível nacional, os tribunais nacionais podem julgar tanto pessoas como empresas envolvidas em violações dos direitos humanos ou de direito penal internacional.
O Direito Penal Internacional criminaliza os crimes mais graves que dizem respeito à comunidade internacional, porque ameaçam a paz, a segurança e o bem-estar no planeta. De facto, as empresas e os seus diretores podem ver-se envolvidos em violações de Direito Penal Internacional de diversas formas, quer perpetrando crimes diretamente (ex: trabalho forçado, tortura), quer por levarem a cabo as suas atividades, estabelecendo relações com as partes em conflito ou investindo em ambientes de conflito, facilitando a atividade criminal. Em particular, as empresas que investem ou estabelecem relações comerciais com uma das partes em conflito enfrentam o risco de auxiliar, ser cúmplices, ou assistir na prática de crimes internacionais.
Do mesmo modo que as pessoas naturais podem ver-se envolvidas na comissão de um crime como agentes principais ou como cúmplices, dependendo das suas ações e do seu papel na atividade criminal, também as empresas podem ser cúmplices de uma ação criminosa. E, na maior parte dos casos, as alegações contra as empresas são relativas à sua cumplicidade na prática de crimes por outros agentes ou entidades, suportando ou assistindo aqueles que verdadeiramente cometem o crime ou o abuso, ou providenciando algum tipo de assistência.
A cumplicidade está intrinsecamente ligada ao conceito de auxílio e instigação, ocorrendo quando uma pessoa voluntariamente ajuda uma outra a cometer um crime, requerendo o elemento mental de means rea, i.e., o conhecimento de que os atos praticados assistem na comissão do crime. O cúmplice não precisa de conhecer o exato crime intencionado ou perpetrado, apenas que ofensas serão cometidas e que a sua conduta pode, de alguma forma, facilitar ou potenciar a atividade criminal.
Isto coloca várias questões no que tange à responsabilidade criminal empresarial, já que, para provar o conhecimento, a condução de operações numa zona de conflito ou a obtenção de lucros de uma atividade criminosa não serão suficientes. A empresa que seja cúmplice da prática de um crime tem de dar assistência, encorajamento ou suporte moral à ofensa com conhecimento e este conhecimento pode ser inferido das circunstâncias relevantes.
O painel de especialistas da ONU declarou, em relação a esta questão, que as empresas que financiam grupos armados podem ser consideradas cúmplices nos crimes por estes cometidos, se tinham conhecimento ou deveriam ter tido conhecimento de que a sua conduta era provável de ajudar a causar tais abusos.
Vejamos o exemplo do caso Lafarge:
A Lafarge, empresa cimenteira francesa, enfrenta atualmente acusações por vários crimes cometidos durante a guerra civil na Síria por terem sido feitos pagamentos ao Estado Islâmico e outros grupos para manter a fábrica de cimento de Jalabiya em funcionamento.
Para conseguir manter as operações na região, a empresa terá encetado negociações com o grupo terrorista Estado Islâmico, parte das hostilidades, para adquirir vários materiais tais como óleo e pozzolan, bem como para assegurar a passagem segura dos trabalhadores nos seus checkpoints. Os pagamentos aos grupos locais de rebeldes chegaram a atingir os 13 milhões de euros. A empresa terá, ainda, pressionado os trabalhadores da fábrica Síria para que continuassem a trabalhar, descurando as constantes ameaças à sua segurança.
Encontra-se, por isso, a Lafarge acusada de crimes como o financiamento de terrorismo, cumplicidade em crimes de guerra e crimes contra a humanidade, criação de perigo deliberado e condições de trabalho indignas, trabalho forçado e exploratório. Considera-se ter existido cumplicidade por parte da empresa Lafarge, tendo esta mantido a sua atividade na zona de guerra, fazendo pagamentos a uma das partes do conflito, o grupo terrorista ISIS, e por ter criado um perigo real para a vida dos seus funcionários.
O Supremo Tribunal de Justiça Francês, em 2021 confirmou as acusações de cumplicidade em crimes contra a humanidade na guerra civil da Síria, esclarecendo que apenas é necessário, para a imputação da participação no crime: o conhecimento da preparação ou comissão destes atos e a ajuda ou assistência que os facilite.
Importa notar, quanto ao elemento mental de means rea da cumplicidade, que no contexto da revolução da informação, seria sempre difícil a empresa provar que não teve conhecimento dos crimes cometidos pelo grupo terrorista Estado Islâmico, cujo conhecimento é generalizado. Considera-se, portanto, que a empresa Lafarge deveria ter tido em conta que a sua conduta, financiando e negociando com o grupo terrorista, era provável de contribuir para abusos. Assim, ainda que a empresa possa alegar que nunca teve a intenção de contribuir para a prática de crimes como homicídio, violência sexual, execuções sumárias e tortura, tal não seria um fator decisivo na ação, já que a cumplicidade não requer um suporte ideológico do perpetrador principal, nem tão pouco o conhecimento dos específicos crimes que estariam a ser planeados e/ou cometidos.
Esta decisão paradigmática do Supremo Tribunal considerou que a transferência consciente de milhões de dólares para uma organização cujo único objetivo é criminoso é suficiente para caracterizar a cumplicidade, independentemente de a parte pretender que o dinheiro seja utilizado para o terrorismo, efetivando a responsabilização das empresas pelos seus delitos ou decisões que causam violações dos direitos humanos para as suas filiais estrangeiras.
Benedita Sequeira