Há em matéria de agricultura e alimentação, mais concretamente no que diz respeito à possibilidade da produção agrícola do globo assegurar, com estabilidade e continuidade, duas escolas de pensamento: uma, com nomes ilustres como o economista britânico Colin Clark que, há 50 anos, afirmava que desde que o mundo seguisse o regime de propriedade e as técnicas de produção norte-americanas, a terra inteira podia alimentar 150 mil milhões de pessoas, isto é, quase vinte vezes a população atual. Estes são, podemos dizer, os otimistas. No lado oposto, os pessimistas retomam ciclicamente os temas malthusianos sobre os cenários mais ou menos apocalípticos do futuro próximo, com a população a crescer a ritmos que a produção alimentar não consegue acompanhar.
Um dos mais célebres defensores desta tese é René Dumont, o agrónomo francês nascido nos princípios do século passado e falecido em 2001, e que se celebrizou pelas suas tomadas de posição socialistas e terceiro-mundistas e pelo seu papel de Cassandra, depois de uma longa carreira profissional na agricultura iniciada na longínqua Indochina francesa.
Clark, contemporâneo de Dumont, teve também um papel importante na Administração económica australiana e integrou, por algum tempo, a FAO; continuou também a sua carreira académica, tendo publicado obras como Population Growth and Land Use ou The Mith of Over Population and Why Population Growth Could be Desirable, obras que, fiéis ao título, claramente contestam as teses malthusianas.
Recentemente, as crises globais causadas pela Covid-19 e principalmente pela guerra na Ucrânia, ao provocar interrupções nos transportes regulares de bens alimentares e ao introduzirem mecanismos de sanções económicas e eventuais represálias, vieram pôr em questão o abastecimento de populações tradicionalmente vulneráveis à fome ou subalimentação.
Para já, dois importantes produtores e exportadores de bens alimentares – a Rússia e a Ucrânia – estão em confronto e as suas exportações por via marítima a partir do Mar Negro, sobretudo de cereais e fertilizantes, ficaram em cheque. Depois, a crise vinha de mais longe, dos anos 2008-2013, com a crise financeira e económica no coração da Euro América. Da crise do centro derivam efeitos nefastos para as periferias vulneráveis, atingidas também pela repercussão das secas e outras consequências das alterações climáticas (na Austrália, por exemplo), que levaram à alta de preços. Tudo isto se conjugou com fenómenos de perturbações políticas e conflitos – por exemplo no Médio Oriente com o Iraque, a Síria, o Yemen, com sucessivas guerras e insurreições.
Mas de todos estes fenómenos, foi a guerra na Ucrânia que levou ao pico os riscos de carência alimentar, sobretudo nos países dependentes de importações na África Subsaariana e no Médio Oriente.
Para entender as razões da crise, bastará lembrar que os dois países inimigos – a Rússia e a Ucrânia – representam 30% das exportações mundiais de trigo; além das dificuldades de transporte, a alta do preço dos cereais, com o trigo a passar os 430 Euros a tonelada, na Primavera de 2022. Um dos que mais sofrem é o Egipto, que importa mais de 80% do seu trigo da Ucrânia e da Rússia; mas também a Líbia e uma série de países da África Subsaariana como o Senegal, a Somália e a Tanzânia. Mais longe, na península do Indostão, o Paquistão importa cerca de 40% do seu trigo da Rússia e igual quantidade da Ucrânia. Deste modo, a insegurança alimentar progrediu com a guerra na Ucrânia, nas regiões da África do Norte e África Subsaariana e no Médio Oriente, invertendo uma tendência positiva que era a diminuição da população mundial nestas circunstâncias de carência.
Deste modo, neste momento, o número de pessoas ameaçadas pela insegurança alimentar aproxima-se dos mil milhões, ou seja, mais de 12% da população do Globo. Por outro lado, a Europa, em nome da luta contra a degradação do clima e da transição ecológica e energética, irá diminuir a sua produção agrícola.
Quanto à Rússia, parece disposta a usar a sua independência e autonomia alimentar como uma arma de pressão sobre os países importadores dos seus cereais. Alguns que tinham votado as sanções contra Moscovo vieram por esta razão a modificar mais tarde o seu voto.

