O comércio internacional tem passado por um período de turbulência, que as análises mais recentes tendem a justificar com o actual contexto de pandemia, cujo efeitos no comércio internacional já foram por nós aflorados em edições anteriores. Mas o rigor que se exige na análise do estado actual do comércio internacional dita que se vá mais longe, mais profundo, mais atrás, pois com ou sem pandemia, as tensões já lá estavam e faziam agudizar as relações entre os três maiores players mundiais: China, Estados Unidos da América e Europa, num eixo cruzado que ligava uma ponta à outra do globo.
O processo de liberalização das trocas comerciais à escala mundial, que se foi desenvolvendo e intensificando de forma mais notória ao longo das últimas quatro a cinco décadas, começou a perder fulgor a partir de 2008. A crise financeira iniciada em Wall Street naquele ano abriu portas a uma desaceleração económica prolongada e alimentou atitudes de pendor nacional-populista, ou popular-nacionalista, umas e outras de cunho intervencionista tendencialmente contrárias ao livre comércio.
A responsabilidade por este retrocesso/regresso não pode ser imputada a apenas uma das partes envolvidas neste complexo jogo comercial. E mesmo para os que apontam o dedo aos EUA, onde Donald Trump é invariavelmente o grande causador de todos os males do proteccionismo, só indo mais fundo veremos que, sob a presidência de Barack Obama (2009-2017) nenhum outro país adoptou mais medidas proteccionistas do que os EUA. Mas é verdade, e importa igualmente reconhecer, que desde que Trump entrou na Casa Branca, com a sua agenda radical para uns, simplesmente conservadora para outros, foi posto mais um travão à liberalização do comércio. E as consequências geopolíticas a longo-prazo de um regime comercial “punitivo” aplicado unilateralmente por Washington podem ser altamente prejudiciais a muitos. Facto.
Historicamente, as políticas da maior economia do mundo nunca foram guiadas pelo princípio do livre-comércio de per si, mas muito mais, e acima de tudo, pelo interesse próprio. Os dois cruzaram-se por vezes.
Mas aos olhos da Europa e do mundo, é tendencialmente mais fácil ver a força do “interesse próprio” a Oriente.
Viajamos até Pequim e impera o mesmo imperativo da satisfação do interesse próprio. Facto. Tal como nos EUA, também agora, na China, livre-comércio e interesse próprio - quer este seja identificado com a Nação ou com o Partido – parecem cruzar-se.
Pela mão de Xi Jinping a China vem tornando-se o arauto do liberalismo económico e comercial, aproveitando o espaço deixado pela retracção proteccionista americana. Naturalmente que sim. E assim continuará a ser, enquanto o Império do Meio for o grande exportador mundial e conseguir projectar o seu poder económico e alargar a sua esfera de influência política.
O recurso a subsídios estatais para promover as exportações chinesas, a opacidade das suas regulamentações, e uma miríade de mecanismos escamoteados para restringir, no plano dos factos, a entrada de empresas estrangeiras no mercado chinês, tornam as críticas de Xi Jinping ao proteccionismo, aos olhos da Europa e do Mundo, vazias de conteúdo e até mesmo hipócritas. Mas “free riders” comerciais há muitos e eles não são todos chineses. Outro facto.
Os demais BRICS, como o Brasil, a Rússia, a Índia e a África do Sul, que muito têm beneficiado do crescimento mundial e da intensificação das trocas por via da sua liberalização, não conseguem pôr-se de acordo quando chega a hora de discutir a liberalização do comércio à mesa internacional. E mesmo a Europa tem estado, em muitos sectores – mais do que aqueles que os europeus estão dispostos a assumir – muito menos aberta ao comércio do que deveria para seu próprio bem. E a menos que adopte outra postura, a Europa corre o risco de sucumbir a uma guerra maior entre os maiores do que ela.
EUA-China: a grande competição
Depois da balança comercial EUA-China ter atingido um déficit de USD 375 mil milhões em 2017, a Administração Trump enveredou por uma estratégia de imposição e aumento sucessivo de tarifas às importações chinesas, numa escalada que justificou retaliações de Pequim no mesmo sentido, embora a uma menor escala. Era o início de um conflito que muitos especialistas afirmavam poder prolongar-se por várias décadas. Mas uma guerra comercial assim prolongada no tempo não pode ser apenas isso mesmo – uma guerra comercial.

O conflito EUA-China tem sido um sintoma de uma maior competição estratégica que deverá intensificar-se (com custos muito mais profundos para a Europa) determinando o curso dos assuntos internacionais durante toda a primeira metade do século XXI.
A China está efectivamente a travar uma batalha no plano das ideias e dos sistemas organizacionais, substituindo-se à ex-U.R.S.S. no quadro da competição político-ideológica com os EUA que marcou a segunda metade do séc. XX. Democracia liberal e capitalismo de mercado, por um lado, regime comunista de partido único e planeamento económico central, por outro, eram os dois lados da equação. Agora, na primeira metade do séc. XXI, com os EUA ainda em cena, é a vez da China vir a jogo, combinando controlo centralizado com um sistema capitalista dinâmico que não pretende derrotar, mas, antes, usá-lo para seu próprio benefício, assim se tornando um adversário, senão mais difícil, pelo menos mais interessante de combater.
A (não) resposta europeia
A guerra comercial EUA-China está a forçar a Europa a escolher um caminho. Mas paralelamente, oferece uma excelente oportunidade para forjar uma política mais incisiva para as suas relações com Pequim. Há trunfos que pode usar nesse sentido.
Os níveis de confiança entre Washington e Pequim (nunca particularmente elevados) parecem ter atingido o seu ponto mais baixo dos últimos 30 anos. Como contraponto, Pequim vê nos mercados europeus uma importante (mas não a única) tábua de salvação, o que, para alguns analistas, abre uma oportunidade única para a Europa negociar. O novo acordo comercial UE-Japão reforça esta possibilidade. Vejamos melhor.
Num cenário em que os EUA se tornam um parceiro cada vez menos viável para países como a China, a Índia ou outros parceiros asiáticos, a UE poderia daqui retirar vantagens e apostar na negociação de acordos comerciais bilaterais de livre comércio com esses mesmos parceiros, precisamente à semelhança do caminho seguido com o Japão.
Mas a resposta do Velho Continente - fortemente fragilizado por divisões internas que o actual contexto de pandemia veio apenas confirmar - às dinâmicas do relacionamento EUA-China tem sido branda e insuficiente, podendo até argumentar-se que o bloco comunitário não tem poder negocial que lhe permita ditar as regras do novo jogo. Pode ser que assim seja. Gostaríamos que não fosse. Mas para isso é necessário ver com os olhos bem abertos o que está realmente em jogo. É necessário esclarecer a confusão em torno da tensão no actual contexto do comércio mundial onde, tal como sempre na História, estão em causa interesses estratégicos mais profundos que extravasam ex e importações, a bem da Europa, a bem das suas nações.

